Sobre a Moral em KANT

 

A filosofia moral de Kant

Anthony Kenny

Universidade de Oxford

 

Assim como a primeira Crítica estabeleceu criticamente os princípios sintéticos a priori da razão teórica, a Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) estabelece criticamente os princípios sintéticos a priori da razão prática. Trata-se de uma breve e eloquente apresentação do sistema moral de Kant.

Na moral, o ponto de partida de Kant é o de que o único bem irrestrito é uma vontade boa. Talento, carácter, autodomínio e fortuna podem ser usados para alcançar maus fins; até mesmo a felicidade pode corromper. O que constitui o bem de uma vontade boa não é o que esta alcança; a vontade boa é um bem em si e por si.

Ainda que por um desfavor especial do destino, ou pelo apetrechamento avaro duma natureza madrasta, faltasse totalmente a esta boa vontade o poder de fazer vencer as suas intenções, mesmo que nada pudesse alcançar a despeito dos seus maiores esforços, e só afinal restasse a boa vontade […] ela ficaria brilhando por si como uma jóia, como coisa que em si tem o seu pleno valor.

Não foi para procurar a felicidade que os seres humanos foram dotados de vontade; para isso, o instinto teria sido muito mais eficiente. A razão foi-nos dada para originar uma vontade boa não enquanto meio para outro fim qualquer, mas boa em si. A vontade boa é o mais elevado bem e a condição de possibilidade de todos os outros bens, incluindo a felicidade.

Que faz, pois, uma vontade ser boa em si? Para responder a esta questão, temos de investigar o conceito de dever. Agir por dever é exibir uma vontade boa face à adversidade. Mas temos de distinguir entre agir de acordo com o dever e agir por dever. Um merceeiro destituído de interesse pessoal ou um filantropo que se deleite com o contentamento alheio podem agir de acordo com o dever. Mas acções deste tipo, por melhores e por mais agradáveis que sejam não têm, de acordo com Kant, valor moral. O nosso carácter só mostra ter valor quando alguém pratica o bem não por inclinação mas por dever — quando, por exemplo, um homem que perdeu o gosto pela vida e anseia pela morte continua a dar o seu melhor para preservar a sua própria vida, de acordo com a lei moral.

A doutrina de Kant é, a este respeito, completamente oposta à de Aristóteles, que defendia não serem as pessoas realmente virtuosas desde que o exercício da virtude fosse contra a sua natureza; a pessoa verdadeiramente virtuosa gosta decididamente de praticar actos virtuosos. Para Kant, por outro lado, é a dificuldade de praticar o bem que é a verdadeira marca da virtude. Kant dá-se conta de ter estabelecido padrões intimidadores de conduta moral — e está perfeitamente disposto a considerar a possibilidade de nunca ter havido, de facto, uma acção levada a cabo unicamente com base na moral e em função do sentido do dever.

O que é, pois, agir por dever? Agir por dever é agir em função da reverência pela lei moral; e a maneira de testar se estamos a agir assim é procurar a máxima, ou princípio, com base na qual agimos, isto é, o imperativo ao qual as nossas acções se conformam. Há dois tipos de imperativos: os hipotéticos e os categóricos. O imperativo hipotético afirma o seguinte: se quisermos atingir determinado fim, age desta ou daquela maneira. O imperativo categórico diz o seguinte: independentemente do fim que desejamos atingir, age desta ou daquela maneira. Há muitos imperativos hipotéticos porque há muitos fins diferentes que os seres humanos podem propor-se alcançar. Há um só imperativo categórico, que é o seguinte: "Age apenas de acordo com uma máxima que possas, ao mesmo tempo, querer que se torne uma lei universal".

Kant ilustra este princípio com vários exemplos, dos quais podemos mencionar dois. O primeiro é este: tendo ficado sem fundos, posso cair na tentação de pedir dinheiro emprestado, apesar de saber que não serei capaz de o devolver. Estou a agir segundo a máxima "Sempre que pensar que tenho pouco dinheiro, peço dinheiro emprestado e prometo pagá-lo, apesar de saber que nunca o devolverei". Não posso querer que toda a gente aja segundo esta máxima, pois, nesse caso, toda a instituição da promessa sucumbiria. Assim, pedir dinheiro emprestado nestas circunstâncias violaria o imperativo categórico.

Um segundo exemplo é este: uma pessoa que esteja bem na vida e a quem alguém em dificuldades peça ajuda pode cair na tentação de responder "Que me interessa isso? Que todos sejam tão felizes quanto os céus quiserem ou quanto o conseguirem; não o prejudicarei, mas também não o ajudo". Esta pessoa não pode querer que esta máxima seja universalizada porque pode surgir uma situação na qual ela própria precise do amor e da simpatia de outras.

Estes casos ilustram duas maneiras diferentes a que o imperativo categórico se aplica. No primeiro caso, a máxima não pode ser universalizada porque a sua universalização implicaria uma contradição (se ninguém cumprir as suas promessas, as próprias promessas deixam de existir). No segundo caso, a máxima pode ser universalizada sem contradição, mas ninguém poderia racionalmente querer a situação que resultaria da sua universalização. Kant afirma que os dois casos correspondem a dois tipos diferentes de deveres: deveres estritos e deveres meritórios.

Nem todos os exemplos de Kant são convincentes. Ele defende, por exemplo, que o imperativo categórico exclui o suicídio. Mas, por mais que o suicídio seja um mal, nada há de autocontraditório na perspectiva do suicídio universal; e uma pessoa suficientemente desesperada pode considerá-lo um fim a desejar piedosamente.

Kant oferece uma formulação complementar do imperativo categórico. "Age de tal modo que trates sempre a humanidade, quer seja na tua pessoa quer na dos outros, nunca unicamente como meios, mas sempre ao mesmo tempo como um fim." Kant pretende, apesar de não ter convencido muitos dos seus leitores, que este imperativo é equivalente ao anterior e que permite retirar as mesmas conclusões práticas. Na verdade, é mais eficaz do que o anterior para expulsar o suicídio. Tirar a nossa própria vida, insiste Kant, é usar a nossa própria pessoa como um meio de acabar com o nosso desconforto e angústia.

Como ser humano, afirma Kant, não sou apenas um fim em mim mesmo, sou um membro do reino dos fins — uma associação de seres racionais sob leis comuns a todos. A minha vontade, como se disse, é racional na medida em que as suas máximas puderem transformar-se em leis universais. A conversa desta afirmação diz que a lei universal é a lei feita por vontades racionais como a minha. Um ser racional "só está sujeito a leis feitas por si mesmo e que, no entanto, sejam universais". No reino dos fins, todos somos igualmente legisladores e súbditos. Isto faz lembrar a vontade geral de Rousseau.

Kant conclui a exposição do seu sistema moral com um panegírico à dignidade da virtude. No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Se algo tem um preço, pode ser trocado por qualquer outra coisa. O que tem dignidade é único e não pode ser trocado; está além do preço. Há dois tipos de preços, afirma Kant: o preço venal, que está relacionado com a satisfação da necessidade; e o preço de sentimento, relacionado com a satisfação do gosto. A moralidade está para lá e acima de ambos os tipos de preço.

A "moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade. A destreza e a diligência no trabalho têm um preço venal; a argúcia de espírito, a imaginação viva e as fantasias têm um preço de sentimento; pelo contrário, a lealdade nas promessas, o bem querer fundado em princípios (e não no instinto) têm um valor intrínseco." As palavras de Kant ecoaram ao longo do século XIX e ainda emocionam muitas pessoas hoje em dia.

Anthony Kenny

Retirado de História Concisa da Filosofia Ocidental, de Anthony Kenny. Trad. Desidério Murcho, Fernando Martinho, Maria José Figueiredo, Pedro Santos e Rui Cabral (Temas e Debates, 1999).

 

Immanuel Kant

Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?

(5 de dezembro de 1783)*

 

Traduzido por Luiz Paulo Rouanet

 

Esclarecimento (Aufklärung) significa a saída do homem de sua minoridade, pela qual ele próprio é responsável. A minoridade é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro. É a si próprio que se deve atribuir essa minoridade, uma vez que ela não resulta da falta de entendimento, mas da falta de resolução e de coragem necessárias para utilizar seu entendimento sem a tutela de outro. Sapere aude![i] Tenha a coragem de te servir de teu próprio entendimento, tal é portanto a divisa do

Esclarecimento. A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma parte tão grande dos homens, libertos há muito pela natureza de toda tutela alheia, comprazem-se em permanecer por toda sua vida menores; e é por isso que é tão fácil a outros instituírem-se seus tutores. É tão cômodo ser menor. Se possuo um livro que possui entendimento por mim, um diretor espiritual que possui consciência em meu lugar, um médico que decida acerca de meu regime, etc., não preciso eu mesmo esforçar-me. Não sou obrigado a refletir, se é suficiente pagar; outros se encarregarão por mim da aborrecida tarefa. Que a maior parte da humanidade (e especialmente todo o belo sexo) considere o passo a dar para ter acesso à maioridade como sendo não só penoso, como ainda perigoso, é ao que se aplicam esses tutores que tiveram a extrema bondade de encarregar-se de sua direção. Após ter começado a emburrecer seus animais domésticos e cuidadosamente impedir que essas criaturas tranqüilas sejam autorizadas a arriscar o menor passo sem o andador que as sustenta, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça se tentam andar sozinhas. Ora, esse perigo não é tão grande assim, pois após algumas quedas elas acabariam aprendendo a andar; mas um exemplo desse tipo intimida e dissuade usualmente toda tentativa ulterior.

É portanto difícil para todo homem tomado individualmente livrar-se dessa minoridade que se tornou uma espécie de segunda natureza. Ele se apegou a ela, e é então realmente incapaz de se servir de seu entendimento, pois não deixam que ele o experimente jamais. Preceitos e fórmulas, esses instrumentos mecânicos destinados ao uso racional, ou antes ao mau uso de seus dons naturais, são os entraves desses estado de minoridade que se perpetua. Quem o rejeitasse, no entanto, não efetuaria mais do que um salto incerto por cima do fosso mais estreito que seja, pois ele não tem o hábito de uma tal liberdade de movimento. Assim, são poucos os que conseguiram, pelo exercitar de seu próprio espírito, libertar-se dessa minoridade tendo ao mesmo tempo um andar seguro.

Que um público, porém, esclareça-se a si mesmo, é ainda assim possível; é até, se lhe deixarem a liberdade, praticamente inevitável. Pois então sempre se encontrarão alguns homens pensando por si mesmos, incluindo os tutores oficiais da grande maioria, que, após terem eles mesmos rejeitado o jugo da minoridade, difundirão o espírito de uma apreciação razoável de seu próprio valor e a vocação de cada homem de pensar por si mesmo. O que há de especial nesse caso é que o público, que outrora eles haviam submetido, os forçará então a permanecer nesse estado, por pouco que eles sejam pressionados pelas iniciativas de alguns de seus tutores totalmente inaptos ao Esclarecimento. O que prova a que ponto é nocivo inculcar preconceitos, pois eles acabam vingando-se de seus autores ou dos predecessores destes. É por esse motivo que um público só pode aceder lentamente ao Esclarecimento. Uma revolução poderá talvez causar a queda do despotismo pessoal ou de uma opressão cúpida e ambiciosa, mas não estará jamais na origem de uma verdadeira reforma da maneira de pensar; novos preconceitos servirão, assim como os antigos, de rédeas ao maior número, incapaz de refletir.

Esse Esclarecimento não exige todavia nada mais do que a liberdade; e mesmo a mais inofensiva de todas as liberdades, isto é, a de fazer um uso público de sua razão em todos os domínios. Mas ouço clamar de todas as partes: não raciocinai! O oficial diz: não raciocinai, mas fazei o exercício! O conselheiro de finanças: não raciocinai, mas pagai! O padre: não raciocinai, mas crede! (Só existe um senhor no mundo que diz: raciocinai o quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!). Em toda parte só se vê limitação da liberdade. Mas que limitação constitui obstáculo ao Esclarecimento, e qual não constitui ou lhe é mesmo favorável? Respondo: o uso público de nossa razão deve a todo momento ser livre, e somente ele pode difundir o Esclarecimento entre os homens; o uso privado da razão, por sua vez, deve com bastante freqüência ser estreitamente limitado, sem que isso

constitua um entrave particular o progresso do Esclarecimento. Mas entendo por uso público de nossa razão o que fazemos enquanto sábios para o conjunto do público que lê.

Denomino de uso privado aquele que se é autorizado a fazer de sua razão em um certo posto civil ou em uma função da qual somos encarregados. Ora, muitas tarefas que concorrem ao interesse da coletividade (gemeinem Wesens) necessitam de um certo mecanismo, obrigando certos elementos da comunidade a se comportar passivamente, a fim de que, graças a uma unanimidade artificial, sejam dirigidos pelo governo a fins públicos, ou pelo menos impedidos de destruí-los. Nesse caso, com certeza, não é permitido argumentar (räsonieren). Deve-se somente obedecer. Dado que essa parte da máquina, no entanto, se concebe como elemento do bem público como um todo, e mesmo da sociedade civil universal, assume por conseguinte a qualidade de um erudito que se dirige a um só público, no sentido próprio do termo, por meio de escritos, ele pode então raciocinar sem que as tarefas às quais ele está ligado como elemento passivo sejam afetadas. Desse modo, seria muito nocivo que um oficial, tendo recebido uma ordem de seus superiores, ponha-se durante seu serviço a raciocinar em voz alta sobre a conveniência ou utilidade dessa ordem; ele só pode obedecer. Mas não se pode com justiça proibir-lhe, enquanto especialista, fazer observações sobre as faltas cometidas durante o período de guerra, e submetê-las ao julgamento de seu público. O cidadão não pode recusar-se a pagar os impostos que lhe são exigidos; a crítica insolente de tais impostos no momento em que ele tem a obrigação de pagá-los pode até ser punida como um escândalo (que poderia provocar rebeliões gerais).

Mas não está em contradição com seu dever de cidadão se, enquanto erudito, ele manifesta publicamente sua oposição a tais imposições inoportunas ou mesmo injustas. Do mesmo modo, um padre está obrigado diante de seus catecúmenos e sua paróquia a fazer seu sermão de acordo com o símbolo da Igreja à qual ele serve; pois ele foi empregado sob essa condição. Mas, enquanto erudito, ele dispõe de liberdade total, e mesma da vocação para tanto, de partilhar com o público todas suas idéias minuciosamente examinadas e bem intencionadas que tratam das falhas desse simbolismo e de projetos visando a uma melhor abordagem da religião e da Igreja. Não há nada aí que seja contrário à sua consciência. Pois o que ele ensina em virtude de sua função enquanto dignitário da Igreja, ele o expõe como algo que ele não pode ensinar como quiser, mas que é obrigado a expor segundo a regra e em nome de uma outra. Ele dirá: nossa Igreja ensina isto ou aquilo; eis as provas das quais ela se serve. Ele extrairá em seguida todas as vantagens práticas, para sua paróquia, dos preceitos os quais, por sua parte, ele não subscreve com convicção total, mas que ele expõe de modo sólido, pois não é impossível que haja neles uma verdade oculta, e em todo caso, nada há ali que contradiga a religião interior. Pois, se ele julgasse encontrar tal coisa, não poderia em consciência exercer sua função; deveria demitir-se. O uso, portanto, que um

pastor em função faz de sua razão diante de sua paróquia é apenas um uso privado; pois esta é uma assembléia de tipo familiar, qualquer que seja sua dimensão; e, levando isso em conta, ele não é livre enquanto padre e não tem o direito de sê-lo, pois ele executa uma missão alheia à sua pessoa. Em contrapartida, enquanto erudito que, por meio de seus escritos, fala ao verdadeiro público, isto é, ao mundo, por conseguinte no uso público de sua razão, o padre desfruta de uma liberdade ilimitada de servir-se de sua própria razão e de falar em seu próprio nome. Pois, querer que os tutores do povo (nas coisas eclesiásticas) voltem a ser menores, é um absurdo que contribui para a perpetuação dos absurdos.

Entretanto, uma sociedade de eclesiásticos, um sínodo, por exemplo, ou uma Classe[ii] (como são chamados entre os holandeses) não deveriam ter o direito de comprometer-se mutuamente por juramento sobre um certo símbolo imutável, para assim manter sob tutela superior permanente cada um de seus membros e, graças a eles, o povo, e desse modo perenizar tal tutela? Digo que é absolutamente impossível. Tal contrato, concluído para proibir para sempre toda extensão do Esclarecimento ao gênero humano, é completamente nulo e para todos os efeitos não ocorrido, tivesse sido implementado mesmo pelo poder supremo, pelas Dietas do Império e pelos mais solenes tratados de paz. Uma época não pode se aliar e conspirar para tornar a seguinte incapaz de estender seus conhecimentos (sobretudo tão urgentes), de libertar-se de seus erros e finalmente fazer progredir o Esclarecimento. Seria um crime contra a natureza humana, cuja vocação original reside nesse progresso; e os descendentes terão pleno direito de rejeitar essas decisões tomadas de maneira ilegítima e crimonosa. A pedra de toque de tudo o que pode ser decidido sob forma de lei para um povo se encontra na questão: um povo imporia a si mesmo uma tal lei? Ora, esta seria possível, por assim dizer, na espera de uma melhor, e por um breve e determinado período, a fim de introduzir uma certa ordem; sob condição de autorizar ao mesmo tempo cada um dos cidadãos, principalmente o padre, em sua qualidade de erudito, a fazer

publicamente, isto é, por escrito, suas observações sobre os defeitos da antiga instituição, sendo enquanto isso mantida a ordem introduzida. E isso até que a compreensão de tais coisas esteja publicamente tão avançada e confirmada a ponto de, reunindo as vozes de seus defensores (nem todos, com certeza), trazer diante do trono um projeto: proteger as paróquias que se julgassem a respeito de uma instituição da religião modificadas segundo suas concepções, sem prejudicar contudo aquelas que quisessem manter-se na situação antiga. Mas é simplesmente proibido acordar-se sobre uma constituição religiosa imutável a não ser contestada publicamente por ninguém, mesmo que fosse o tempo de duração de uma vida, e anular literalmente, desse modo, todo um período da marcha da humanidade em direção à sua melhoria, e torná-la não só estéril, mas ainda prejudicial à posteridade. Um homem pode, a rigor, pessoalmente e, mesmo então, somente por algum tempo, retardar o Esclarecimento em relação ao que ele tem a obrigação de saber; mas renunciar a ele, seja em caráter pessoal, seja ainda mais para a posteridade, significa lesar os direitos sagrados da humanidade, e pisar-lhe em cima.

Mas o que um povo não é sequer autorizado a decidir por si mesmo, um monarca tem ainda menos o direito de decidir pelo povo; pois sua autoridade legislativa repousa precisamente sobre o fato de que ele reúne toda a vontade popular na sua. Se ele propõe apenas conciliar toda verdadeira ou pretensa melhoria com a ordem civil, ele só pode, por outro lado, deixar a cargo de seus súditos o que eles estimam necessário para a salvação de sua alma; isto não lhe diz respeito. Em contrapartida, ele deve velar para que ninguém impeça a outro pela violência de trabalhar com todas suas forças para a definição e promoção de sua salvação. Ele prejudica à sua própria majestade quando intervém nesses assuntos, como se concernissem à autoridade do governo os escritos nos quais seus súditos tentam esclarecer sua idéia, ou quando age por sua própria vontade e se expõe à censura de Caesar non est supra Grammaticos[iii]. É também, e mais ainda, o caso quando ele rebaixa

seu poder supremo defendendo contra o resto de seus súditos o despotismo eclesiástico de alguns tiranos em seu Estado.

Quando se pergunta, portanto: vivemos atualmente numa época esclarecida? A

resposta é: não, mas numa época de esclarecimento. Muito falta ainda para que os homens, no estado atual das coisas, tomados conjuntamente, estejam já num ponto em que possam estar em condições de se servir, em matéria de religião, com segurança e êxito, de seu próprio entendimento sem a tutela de outrem. Mas que, desde já, o campo lhes esteja aberto para mover-se livremente, e que os obstáculos à generalização do Esclarecimento e à saída da minoridade que lhes é auto-imputável sejam cada vez menos numerosos, é o que temos signos evidentes para crer. A esse respeito, é a época do Esclarecimento, ou o século de Frederico.[iv]

Um príncipe que não julga indigno de si mesmo que ele considere como um dever nada prescrever aos homens em matéria de religião, que lhes deixa sobre esse ponto uma liberdade total, e recusa, no que lhe diz respeito, o orgulhoso termo de tolerância, é ele mesmo esclarecido, e por ter sido o primeiro a libertar o gênero humano de sua minoridade, pelo menos no que concernia ao governo, e por ter deixado a cada um livre de se servir de sua própria razão em todas as questões de consciência, merece ser louvado pelo mundo que lhe é contemporâneo, e pelo futuro agradecido. Sob seu reinado, honoráveis eclesiásticos, a despeito de seu dever de função, têm a permissão, em qualidade de eruditos, de apresentar livre e publicamente ao exame de todos os juízos e pontos de vista que se afastam aqui ou ali dos símbolos adotados; melhor ainda, esse direito é concedido a todos que não se encontram limitados por seu dever de função. Esse espírito de liberdade estende-se também ao exterior, mesmo onde deve lutar com os obstáculos externos de um governo que ignora sua verdadeira missão. Pois mostra a este, por seu exemplo brilhante, que ali onde reina a liberdade nada há a temer para a tranquilidade pública e unidade do Estado. Os homens procuram libertar-se de sua grosseria, por pouco que não se esforcem para mantê-los artificialmente em tal condição.

Situei o alvo principal do Esclarecimentro, a saída do homem da minoridade da qual ele próprio é culpado, principalmente no domínio da religião: pois, em relação às ciências e às artes, nossos soberanos não se interessaram em desempenhar o papel de tutores de seus súditos. Além disso, essa minoridade à qual me referi, além de ser a mais nociva, é também a mais desonrosa. Mas a reflexão de um chefe de Estado que favorece o Esclarecimento vai mais longe e vê bem que, mesmo a respeito da legislação, não há perigo em autorizar seus súditos a fazer publicamente uso de sua própria razão, e em expor ao mundo suas idéias sobre uma melhor redação das leis, mesmo que seja com ajuda de uma crítica franca das já existentes; é disso que temos um exemplo brilhante, que nenhum outro monarca a não ser aquele que veneramos forneceu ainda.

Mas somente aquele que, além disso, ele mesmo esclarecido, não teme as trevas, mas ao mesmo tempo tendo sob o comando um exército numeroso e bem disciplinado, garantia da tranqüilidade pública, pode dizer o que um Estado livre não ousa dizer: raciocinai o quanto quiserdes, e sobre o que desejardes, mas obedecei! Revela-se assim uma marcha estranha, inesperada das coisas humanas; de todo modo, aqui como em todo lugar, quando se considera globalmente, quase tudo o que há nisso é paradoxal. Um grau mais elevado de liberdade civil parece ser vantajoso para a liberdade de espírito do povo, e lhe impõe todavia barreiras intransponíveis; um grau menos elevado daquela proporciona a este em contrapartida a possibilidade de estender-se de acordo com suas forças. Quando, portanto, a natureza libertou de seu duro envoltório o germe sobre o qual ela vela mais ternamente, isto é, a inclinação e a vocação para pensar livremente, então essa inclinação age por sua vez

sobre a sensibilidade do povo (graças à qual este se torna cada vez mais capaz de ter a liberdade de agir) e finalmente, também sobre os princípios do governo, que encontra o seu próprio interesse em tratar o homem, que doravante é mais do que uma máquina, na medida de sua dignidade.*

 

Königsberg, Prússia,

30 de sentembro de 1784.

 

* Na revista semanal de Büsching de 13 de setembro, leio hoje, 30 do mesmo mês, o anúncio da Berlinische Monatsschrift deste mês, na qual é anunciada a resposta do senhor Mendelssohn à mesma questão. Ainda não a tive entre as mãos; senão teria segurado a presente, cujo único interesse é agora o de tentar mostrar o que o acaso pode conter de concordância entre pensamentos.



* O crítico da "Berlinischer Monatschrifft" coloca de início a seguinte observação: "É conveniente que a união conjugal fique sob a sanção da religião?" E o reverendo Sr. Zöllner: "O que é o Esclarecimento? Essa questão é aproximadamente a seguinte: o que é a verdade, é preciso responder a essa questão para que o homem se julgue esclarecido! E ainda não vi ninguém que tenha respondido a isso!

 

[i] "Ousa saber!" Horácio, Epistulae, livro 1, carta 2, verso 40.

 

[ii] Klassis, termo neerlandês que servia para designar os sínodos ou reuniões de tipo eclesiástico.

 

[iii]  "César não está acima dos gramáticos".

 

[iv] Trata-se de Frederico II, o Grande, rei da Prússia.