Trechos de John Locke

Trechos do SEGUNDO TRATADO SOBRE O GOVERNO CIVIL, de John Locke.

 

Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Editora Vozes

 

Da Propriedade

(...)

26. Deus, que deu o mundo aos homens em comum, deu-lhes também a razão, para que se servissem dele para o maior benefício de sua vida e de suas conveniências. A terra e tudo o que ela contém foi dada aos homens para o sustento e o conforto de sua existência. Todas as frutas que ela naturalmente produz, assim como os animais selvagens que alimenta, pertencem à humanidade em comum, pois são produção espontânea da natureza; e ninguém possui originalmente o domínio privado de uma parte qualquer, excluindo o resto da humanidade, quando estes bens se apresentam em seu estado natural; entretanto, como foram dispostos para a utilização dos homens, é preciso necessariamente que haja um meio qualquer de se apropriar deles, antes que se tornem úteis ou de alguma forma proveitosos para algum homem em particular. Os frutos ou a caça que alimenta o índio selvagem, que não conhece as cercas e é ainda proprietário em comum, devem lhe pertencer, e lhe pertencer de tal forma, ou seja, fazer parte dele, que ninguém mais possa ter direito sobre eles, antes que ele possa usufruí-los para o sustento de sua vida.

27. Ainda que a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os homens, cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa; sobre esta ninguém tem qualquer direito, exceto ela. Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens. Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade.

28. Aquele que se alimentou com bolotas que colheu sob um carvalho, ou das maçãs que retirou das árvores na floresta, certamente se apropriou deles para si. Ninguém pode negar que a alimentação é sua. Pergunto então: Quando começaram a lhe pertencer? Quando os digeriu? Quando os comeu? Quando os cozinhou? Quando os levou para casa? ou Quando os apanhou? E é evidente que se o primeiro ato de apanhar não os tornasse sua propriedade, nada mais poderia fazê-lo. Aquele trabalho estabeleceu uma distinção entre eles e o bem comum; ele lhes acrescentou algo além do que a natureza, a mãe de tudo, havia feito, e assim eles se tornaram seu direito privado. Será que alguém pode dizer que ele não tem direito àquelas bolotas do carvalho ou àquelas maçãs de que se apropriou porque não tinha o consentimento de toda a humanidade para agir dessa forma? Poderia ser chamado de roubo a apropriação de algo que pertencia a todos em comum? Se tal consentimento fosse necessário, o homem teria morrido de fome, apesar da abundância que Deus lhe proporcionou. Sobre as terras comuns que assim permanecem por convenção, vemos que o fato gerador do direito de propriedade, sem o qual essas terras não servem para nada, é o ato de tomar uma parte qualquer dos bens e retirá-la do estado em que a natureza a deixou. E este ato de tomar esta ou aquela parte não depende do consentimento expresso de todos. Assim, a grama que meu cavalo pastou, a relva que meu criado cortou, e o ouro que eu extraí em qualquer lugar onde eu tinha direito a eles em comum com outros, tornaram-se minha propriedade sem a cessão ou o consentimento de ninguém. O trabalho de removê-los daquele estado comum em que estavam fixou meu direito de propriedade sobre eles.

29. Se fosse exigido o consentimento expresso de todos para que alguém se apropriasse individualmente de qualquer parte do que é considerado bem comum, os filhos ou os criados não poderiam cortar a carne que seu pai ou seu senhor lhes forneceu em comum, sem determinar a cada um sua porção particular. Ainda que a água que corre na fonte pertença a todo mundo, quem duvida que no cântaro ela pertence apenas a quem a tirou? Seu trabalho a tirou das mãos da natureza, onde ela era um bem comum e pertencia igualmente a todos os seus filhos, e a transformou em sua propriedade.

31. Talvez surja uma objeção que, se a colheita das bolotas ou de outros frutos da terra etc., estabelece um direito a eles, então qualquer um pode tomar tudo para si, se esta for a sua vontade. A isto eu respondo que não é bem assim. A mesma lei da natureza que nos concede dessa maneira a propriedade, também lhe impõe limites. “Deus nos deu tudo em abundância” (1Tm 6,17), e a inspiração confirma a voz da razão. Mas até que ponto ele nos fez a doação? Para usufruirmos dela. Tudo o que um homem pode utilizar de maneira a retirar uma vantagem qualquer para sua existência sem desperdício, eis o que seu trabalho pode fixar como sua propriedade. Tudo o que excede a este limite é mais que a sua parte e pertence aos outros. Deus não criou nada para que os homens desperdiçassem ou destruíssem. Considerando-se então a abundância das provisões naturais que há tanto tempo existem no mundo, o número restrito dos consumidores e a pequena parte daquela provisão que a indústria de um único homem pode estender e aumentar em detrimento dos outros – especialmente conservando dentro dos limites estabelecidos pela razão aquilo que pode servir ao seu uso – é preciso admitir que a propriedade adquirida dessa maneira corria pouco risco, naquela época, de suscitar querelas ou discórdias.

37. (...) Antes da apropriação da terra, aquele que colhia todos os frutos silvestres, que matava, caçava ou domesticava todos os animais selvagens que podia; aquele que aplicava sua atividade aos produtos espontâneos da natureza e modificava de uma maneira qualquer o estado em que ela os havia criado, colocando neles o seu trabalho, adquiria assim a propriedade sobre eles. Mas se esses bens viessem a perecer em sua propriedade sem o devido uso; se os frutos apodrecessem ou a caça ficasse putrefata antes de poder ser consumida, ele infringia a lei comum da natureza e era passível de punição: ele estaria invadindo a terra de seu vizinho, pois seu direito cessava com a necessidade de utilizar estes bens e a possibilidade de deles retirar os bens para sua vida.

38. As mesmas delimitações quantitativas regiam também a posse da terra. Tudo o que o homem plantava, colhia, armazenava e consumia antes de se deteriorar pertencia-lhe por direito; todo o gado e os produtos que podia cercar, alimentar e utilizar também eram seus. Mas se a grama apodrecesse no solo de seu cercado ou os frutos de sua plantação perecessem antes de ser colhidos e consumidos, esta parte da terra, não importa se estivesse ou não cercada, podia ser considerada como inculta e podia se tornar posse de qualquer outro.

40. Também não é tão estranho, como talvez pudesse parecer antes da consideração, que a propriedade do trabalho fosse capaz de desenvolver uma importância maior que a comunidade da terra. Pois na verdade é o trabalho que estabelece em tudo a diferença de valor; basta considerar a diferença entre um acre de terra plantada com fumo ou cana, semeada com trigo ou cevada, e um acre da mesma terra deixado ao bem comum, sem qualquer cultivo, e perceberemos que a melhora realizada pelo trabalho é responsável por grandíssima parte do seu valor. Creio estar propondo uma avaliação moderada, se disser que dentre os produtos da terra úteis à vida do homem nove décimos provêm do trabalho; da mesma forma, se quisermos avaliar corretamente os bens segundo o uso que deles fazemos, e dividir as várias despesas decorrentes deste uso – o que se deve apenas à natureza e o que se deve ao trabalho – veremos que na maior parte delas noventa e nove por cento correm exclusivamente por conta do trabalho.

46. A maior parte das coisas realmente úteis à vida do homem, aquelas que a necessidade de sobreviver incitou os primeiros camponeses do mundo a explorar, como fazem agora os americanos, são em geral coisas de duração efêmera, que, se não forem consumidas pelo uso, deterioram e perecem por si mesmas: o ouro, a prata e os diamantes são coisas às quais o capricho ou a convenção atribuem um valor maior que a sua utilidade real e sua necessidade para o sustento da vida. Agora, de todas as coisas boas que a natureza proveu em comum, cada um tem o direito, como foi dito, de tomar tanto quanto possa utilizar; cada um se tornaria proprietário de tudo o que seu trabalho viesse a produzir; tudo pertenceria a ele, desde que sua indústria pudesse atingi-lo e transforma-lo a partir de seu estado natural. Aquele que colhesse cem alqueires de bolotas ou de maçãs adquiriria assim uma propriedade sobre eles; a mercadoria era sua desde o momento em que a havia colhido. Ele só tinha de se preocupar em consumi-la antes que estragasse, senão isto significaria que ele havia colhido mais que a sua parte e, portanto, roubado dos outros; e, na verdade, era uma coisa tola, além de desonesta, acumular mais do que ele poderia utilizar. Se ele distribuísse a outras pessoas uma parte desses frutos, para que não perecessem inutilmente em suas mãos, esta parte ele também estaria utilizando; e se ele também trocasse ameixas que iriam perecer em uma semana, por nozes que durariam um ano para serem comidas, não estaria lesando ninguém; ele não estaria desperdiçando a reserva comum nem destruindo parte dos bens que pertenciam aos outros enquanto nada se estragasse inutilmente em suas mãos. Se ele trocasse suas nozes por um pedaço de metal cuja cor lhe agradara, ou trocasse seus carneiros por conchas, ou a lã por uma pedra brilhante ou por um diamante, e os guardasse com ele durante toda a sua vida, não estaria violando os direitos dos outros; podia guardar com ele a quantidade que quisesse desses bens duráveis, pois o excesso dos limites de sua justa propriedade não estava na dimensão de suas posses, mas na destruição inútil de qualquer coisa entre elas.

47. Assim foi estabelecido o uso do dinheiro – alguma coisa duradoura que o homem podia guardar sem que se deteriorasse e que, por consentimento mútuo, os homens utilizariam na troca por coisas necessárias à vida, realmente úteis, mas perecíveis.

50. Mas uma vez que o ouro e a prata, sendo de pouca utilidade para a vida do homem em relação ao alimento, ao vestuário e aos meios de transporte, retiram seu valor apenas da concordância dos homens, de que o trabalho ainda proporciona em grande parte a medida, é evidente que o consentimento dos homens concordou com uma posse desproporcional e desigual da terra; através de um consentimento tácito e voluntário, eles descobriram e concordaram em uma maneira pela qual um homem pode honestamente possuir mais terra do que ele próprio pode utilizar seu produto, recebendo ouro e prata em troca do excesso, que podem ser guardados sem causar dano a ninguém; estes metais não se deterioram nem perecem nas mãos de seu proprietário. Esta divisão das coisas em uma igualdade de posses particulares, os homens tornaram praticável fora dos limites da sociedade e sem acordo, apenas atribuindo um valor ao ouro e à prata, e tacitamente concordando com o uso do dinheiro.